terça-feira, 10 de abril de 2012

 o preconceito lingüístico. Basta acompanhar, por exemplo, as inúmeras preleções de cunho normativista (observadas em diversos âmbitos) centradas no que é "certo" e "errado" na língua e a conseqüente avaliação social que atribui prestígio ou estigma às diferentes falas, ou as discussões travadas em torno da linguagem politicamente correta, para se constatar o caráter polêmico do tema. Por outro lado, a atualidade do assunto é visível na recorrência com que tem sido abordado sob diferentes ângulos, conforme atestam algumas publicações, como a de Bagno (1999), o documento sobre Definição da Política Lingüística no Brasil resultante de ampla discussão entre os lingüistas e publicado no Boletim da ABRALIN, 23 (1999); o Boletim da ALAB 4-4 (2000) sobre o Projeto de Lei contra os Estrangeirismos, bem como matérias em jornais a exemplo de Faraco (2001) na Folha de S.Paulo, entre outras.
Objetivando estender o debate a um público mais amplo, numa linguagem acessível e "sem o peso da argumentação acadêmica", como bem apontam os organizadores na introdução do livro, O direito à fala surge oportunamente num momento em que se testemunha o sucesso de "novos gramáticos mediatizados" e em que ganha "nova relevância o poder simbólico da linguagem" (p.10). Contendo dez trabalhos que refletem com seriedade diferentes leituras do preconceito lingüístico, a obra se propõe intervencionista, colocando, de maneira instigante, resultados da pesquisa em diversas áreas da linguagem a serviço do direito à expressão, com respeito às falas que os grupos construíram ao longo da história. Os organizadores apresentam, com elegância, o conjunto dos artigos, tecendo a trama que interliga os diferentes textos, recobertos por uma mesma temática que pode ser resumida como: crítica à idéia de unidade nacional alicerçada numa língua idealizada pura e única.
No artigo de abertura, intitulado A prosa de Lima Barreto: o que quer essa língua?, Cláudio Cruz, num estilo leve e despojado, refere-se aos, assim chamados por ele, "três moleques do Segundo Reinado" – Machado de Assis, Cruz e Sousa e Lima Barreto (p.20), reunidos pela característica comum de, negros, terem sido apadrinhados por famílias nobres e, conseqüentemente, terem tido acesso a uma formação superior. Não obstante esse traço de aproximação, o autor opõe Lima Barreto aos demais escritores, em razão do uso peculiar que aquele faz da língua portuguesa, considerado à época como incorreto, e só mais tarde visto como inserido, com estilo, no contexto cultural, por buscar falar a língua do povo e não retratar a linguagem dominante do período. Esse fato particulariza a obra do romancista, caracterizando-a como de "militância literária" lingüística, daí sua importância no que se refere à questão do preconceito lingüístico. Cruz convoca o leitor a, sem demora, procurar entender a questão da língua na obra do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha e de Triste Fim de Policarpo Quaresma (cujo conjunto parece trazer "uma espécie de bomba-relógio que só agora começa a ser detonada"), especialmente nesse momento em que, conforme vislumbra o ensaista, presenciamos o início da implosão da idéia de um espaço literário nacional e único, quando outras línguas buscam expressão dentro da língua oficial, quando "a ilusão de uma nação coesa e unificada deixa de existir" (p.20).
Para escrever o segundo artigo, Os Aldrovandos Cantagalos e o preconceito lingüístico, José Luiz Fiorin se inspira em um personagem de Monteiro Lobato do conto O colocador de pronomes, o qual, vivendo em busca de erros gramaticais, deixa de perceber as belezas da linguagem. A língua como resultado de um processo histórico é o pano de fundo para a caracterização do preconceito lingüístico como fruto da "intolerância em relação à variação e à mudança" (p.27), preconceito que a própria escola e os gramáticos tratam de difundir. O autor focaliza fatos da mídia em que a diversidade lingüística é ridicularizada e, com bastante pertinência, examina trechos de uma entrevista de Pasquale Cipro Neto dada à revista VEJA (setembro de 1997), nos quais o professor de gramática corrobora muitos preconceitos lingüísticos partindo da concepção equivocada de que a língua é homogênea e estática. Aproveitando "deixas" de Pasquale na matéria, o autor discorre sobre diferenças entre a fala e a escrita e entre o português brasileiro e o europeu, e discute comentários equivocados como os seguintes: do ponto de vista da norma culta, a melhor fala é a do Rio de Janeiro e a pior é a de São Paulo; é idiota quem usa palavras em inglês no lugar de palavras equivalentes em português; em termos lingüísticos "estamos nivelados por baixo" (p.34); e a "pérola" final: o comentário do referido professor, por ocasião de um conhecido comercial da cadeia McDonalds, de que não teria feito publicidade dos lanches mas sim divulgado a língua portuguesa... Por fim, considerando amplamente a diversidade lingüística, desqualifica com veemência a opinião dos guardiões da língua, de que "os lingüistas estão destruindo o idioma, porque para eles vale tudo" (p.35).
Tratando, na seqüência, de Estrangeirismos: empréstimo ou ameaça?, Pedro Garcez e Ana Zilles atribuem ao empréstimo, tido como fenômeno constante no contato entre comunidades lingüísticas, marca de identidade alienígena com valores simbólicos por vezes conflitantes. Os autores organizam didaticamente o texto em torno das seguintes seções: Legitimidade e pureza; Anglicismos: A força do desejo; Diligências legislativas; Preconceito e exclusão; Diversidade invisível e vida social da linguagem. De início, a partir do exame de uma série de palavras e expressões, demonstram não ser tarefa simples identificar o que seria português puro e como algo deixa de ser um estrangeirismo e se incorpora à língua da comunidade. A seguir, os autores argumentam que a aversão ao estrangeirismo é devida, especialmente, à presença da indústria simbólica norte-americana, portanto os empréstimos não seriam, na realidade, necessários, mas desejados face aos apelos da máquina capitalista globalizante. Na seção seguinte, trazem à tona a posição ideológica que sustenta os projetos de lei contra os estrangeirismos, destacando, com propriedade, o fato de que se apagam as diferenças internas aos grupos quando um elemento externo paira como ameaça comum, o que acaba por legitimar a concepção de que "a língua da nação se restringe à língua do poder, à norma escrita, socialmente controlável, cujos limites são definidos pelas classes dominantes" (p.46). Ao abordarem a questão do preconceito e da exclusão, os autores dão visibilidade a uma série de equívocos, dentre os quais destaco: o de que a escrita é a essência da linguagem; o que ignora a diversidade lingüística e os processos de variação e mudança; e o que prevê a existência de uma língua pura. Por fim, Garcez e Zilles tratam de questões como a atitude frente à língua de poder e a competição pelo acesso aos bens sociais, concluindo que a "chave invisível, mas legitimada, das práticas excludentes" é a ideologia lingüística de que somos um país monolíngüe (p.51).
A denúncia do papel da mídia na formação e na divulgação de preconceitos lingüísticos, mediante análise de cenas da novela Escrava Isaura (Rede Globo, 1976), baseada no romance de Bernardo Guimarães, e do filme americano No coração de Clara – ambos tratando de questões raciais, é a tônica do texto de Fábio Lopes da Silva: Dois casos de preconceito lingüístico na mídia. Em ambos os casos, o pretenso anti-racismo retratado pelo o quê se esvazia no como é lingüisticamente expresso. Na novela, o autor centra a atenção na forma como os personagens da Casa Grande se expressam, isto é, no tipo de construções gramaticais eleitas para representar a fala dos brancos (incluindo entre esses a escrava 'mocinha' Isaura) – emoldurada por "todos os ss e rr da norma gramatical", e a fala dos demais escravos – estilo "Tio Barnabé" (p.55); e destaca, como efeito induzido, a reprodução do mito de uma língua perfeita e intocada, tomado como realidade histórica, o que, segundo uma avaliação perspicaz do autor, leva as novelas de época a provocarem um prejuízo cultural. O autor projeta uma associação bastante interessante entre a chamada corrupção da língua e "uma espécie de vírus lingüístico que, na época da escravidão, permanecia confinado e controlado..." (p.57). No filme, é recortada uma cena em que o garoto branco, dignificando a língua materna da governanta negra, dirige-se a ela em patuá jamaicano, legendado em português como "num vô fazê isso", episódio que reproduz um preconceito generalizado: o de que construções como essa se restringem a determinada camada sócio-demográfica, donde o autor conclui que "atribuímos a nós mesmos uma língua perfeitamente imaginária" (p.61).
No quinto artigo da coletânea, Edwiges Morato aborda As afasias entre o normal e o patológico: da questão (neuro)lingüística à questão social, distribuindo o tema em quatro seções: As afasias entre o normal e o patológico; O processo de patologização da linguagem e dos falantes; A origem das "significações intoleráveis"; e O afásico entre o preconceito lingüístico-cognitivo e a negligência social. Na primeira seção, a autora tematiza o preconceito contra os que apresentam alterações em suas diferentes formas de uso da linguagem em decorrência de lesão cerebral adquirida, enfatizando que a afasia não é apenas uma questão de saúde, ou uma questão lingüística, ou cognitiva, mas é também uma questão social; nesse sentido, considera que os limites entre a normalidade e a patologia estão vinculados à "vontade de verdade" (Foucault, 1977) de uma época, ou seja, à mentalidade e ao discurso científico vigente em uma certa sociedade. Em seguida, discorre sobre o processo de patologização, argumentando que existe um continuum sem fronteiras rígidas entre o normal e o patológico e que as doenças devem ser entendidas como a perturbação de um equilíbrio. A autora critica condutas médico-terapêuticas que se voltam para a "superação" do distúrbio de linguagem tido como um déficit (em decorrência de uma visão idealizada de linguagem como poder racionalizante da mente), ponderando que o afásico, mesmo perdendo a palavra, "não perde necessariamente sua capacidade discursiva" (p.70). Na seção seguinte, a autora comenta que, numa concepção normativa de cognição e de linguagem, fatos como digressões, lapsos, hesitações, etc. são caracterizados como "significações intoleráveis" e tidos como "sintomas" em quadros de afasia, muitos deles assim rotulados por razões ideológicas e não por razões lingüísticas ou cognitivas. O que explica o surgimento das "significações intoleráveis" é a noção de linguagem como instrumento de acesso aos processos cognitivos internos, cuja função primordial é a comunicação à qual seríamos levados por um princípio natural de cooperação. Encerrando o texto, Morato apresenta uma ação exemplar contra o estigma e a exclusão social impostos ao afásico: a criação do Centro de Convivência de Afásicos (IEL/Unicamp), lugar onde se desmedicaliza a afasia e se enxerga "o páthos como constitutivo do normal" (p.74).
O artigo seguinte, A língua popular tem razões que os gramáticos desconhecem, é assinado por Heronides Moura. O autor inicia o texto questionando os motivos que levam à escolha da norma culta como a representativa e "correta" da língua, e aponta, como uma das razões pelo preconceito contra a fala das classes populares, a dicotomia arraigada em nossa cultura, decorrente da correlação entre pensamento e linguagem, que opõe a "racionalidade da classe educada" à "espontaneidade pré-racional do povo" (p.76): a língua popular seria criativa, espontânea mas às vezes ilógica; a língua culta seria a melhor expressão da racionalidade e da cultura – oposição que reflete a "normatização social promovida pelo Estado brasileiro" (p.77). Moura ilustra muito bem sua linha de raciocínio com uma análise criteriosa de formas de representar a comparação em português, contrapondo ao padrão normativo 'tão/tanto... quanto' e '...como', as expressões'que nem' e 'que só', tidas como de uso popular e possivelmente condenadas pelos normativistas pelo aparente ilogicismo presente nelas. A partir de um princípio básico da interpretação segundo o qual os interlocutores levam em conta não só o sentido inicial das expressões mas também a intenção do falante, o autor demonstra que a forma 'que nem' ('o aluno é esperto que nem o professor') simultaneamente compara e formula um julgamento sobre o termo comparado. A construção seria barrada como contradição lógica se analisada apenas quanto ao sentido inicial; mas esse uso deve ser interpretado como hiperbólico, cumprindo a função comunicativa de enfatizar que o julgamento recai sobre o termo comparado e não sobre o comparante. Já a expressão 'que só' ('o aluno é feio que só o professor') ressalta não só o julgamento feito sobre o termo comparado, mas também o caráter prototípico do termo com o qual se compara (no caso, o professor seria tido como um exemplo de feiúra, propriedade que é projetada sobre o aluno). Por fim, na construção elíptica ('o aluno é feio que só'), a elipse do termo comparante é inicialmente interpretada como de um protótipo, mas a construção acaba se congelando e funcionando como um advérbio que intensifica a propriedade comparada (= muito feio). O autor demonstra, assim, o perfeito funcionamento comunicativo dessas construções, que são solenemente ignoradas pelos gramáticos tradicionais.
Abordando a relação entre o Estado e a língua, no texto Brasileiro fala português: monolingüismo e preconceito lingüístico, Gilvan Müller de Oliveira enfatiza os seguintes fatos, subjacentes à concepção de que no Brasil se fala uma única língua: preconceito, desconhecimento da realidade e projeto político de construir um país monolíngüe. O autor coloca muito bem a questão de que ideologicamente produziu-se no Brasil o conhecimento de que se fala o português e o desconhecimento de que muitas outras línguas são faladas (por volta de 200 idiomas atualmente, sendo 170 línguas autóctones e 30 línguas alóctones). Müller de Oliveira traça um percurso histórico ricamente documentado do plurilingüismo no Brasil, da política homogeinizadora e repressiva de imposição do português como a única língua legítima e da conseqüente redução do número de línguas por um processo conhecido como "deslocamento lingüístico" (p.84). Esse processo envolveu ações como (i) a de civilizar os índios mediante a imposição da língua portuguesa e o "assassinato" especialmente da língua geral na Colônia (o que ocasionou uma verdadeira "guerra de línguas" (Calvet, 1999a)); e, posteriormente, (ii) a de nacionalizar o ensino no Estado Novo, com repressão violenta às línguas alóctones, especialmente o alemão e o italia no no sul do Brasil. O que o autor avalia como um dos fatos mais trágicos é que poucas vozes representativas se opuseram ao processo de homogeneização, em defesa de uma sociedade culturalmente pluralista. Evidenciando o fato de que somos hoje um país pluricultural e multilíngüe, seja pela variedade dialetal, seja pela diversidade de línguas faladas no território, Müller de Oliveira critica o espaço reduzido que ocupam na universidade tanto pesquisas sobre plurilingüismo, como projetos de uma política de garantia dos direitos lingüísticos às populações não falantes de português, e conclui defendendo, com certa dose de ousadia, a idéia de uma redefinição do "conceito de nacionalidade, tornando-o plural e aberto à diversidade" (p.91).
Quem assina o artigo seguinte é Kanavillil Rajagopalan. Após fundamentar certos argumentos que têm circulado contra a linguagem politicamente correta, o autor de Sobre o porquê de tanto ódio contra a linguagem "politicamente correta" conduz uma reflexão em outra direção, evidenciando situações em que a linguagem tem, sim, impacto sobre as coisas e os acontecimentos. O autor vale-se, inicialmente, de algumas críticas feitas por Possenti (1995), tais como a de que o problema não está na linguagem propriamente dita, mas tem méritos políticos e que é um equívoco pensar que uma substituição de palavras com diferentes conotações ideológicas poderia influenciar na diminuição dos preconceitos, e coloca a descoberto a concepção de linguagem e de mundo que recobre crenças generalizadas como a de que a linguagem serve de roupagem do pensamento, a primeira sujeita a todo tipo de desgaste, o último não; e a de que a linguagem pode nos enganar (veja-se o uso da linguagem figurada). A posição que daí se segue é: de que adianta mudar a linguagem se o pensamento é o mesmo? Contra-argumentando, o autor enfraquece a noção saussureana de arbitrariedade do signo ao afirmar que a grande maioria dos objetos que se nos apresentam "está presente em nossa consciência junto com a imagem que cada um deles adquiriu ao longo dos tempos" (p.99). Rajagopalan respalda sua idéia no mundo do marketing, em que todo objeto é no fundo um "produto", isto é, um objeto produzido de forma tal que é impossível recuperá-lo em sua "pureza", pois os conhecemos ligados ao seu modo de apresentação; especialmente no princípio norteador do marketing de que é possível transformar o produto e não apenas a sua imagem. Ao refletir sobre a prática de determinados usos lingüísticos à luz do mundo do marketing, o autor mobiliza o leitor a acreditar que ao trocar as palavras trocam-se também as coisas. Então concluímos com ele: uma das maneiras mais eficazes (não a única!) de combater os preconceitos sociais é monitorar a linguagem e exercer controle sobre a fala, pois "intervir na linguagem significa intervir no mundo" (p.102).
Focalizando o caráter idealizado do português oficial que privilegia a escrita padrão, Marco Rocha e Juliana Pereira escrevem O uso de corpora na elaboração de trabalhos de referência: uma vacina contra o preconceito, argumentando que trabalhos de referência tais como gramáticas e dicionários não cumprem adequadamente sua função em virtude de discriminação da língua falada. Na seção subseqüente à introdução, os autores falam sobre as abordagens com base em corpus, discorrendo sobre as características ideais do mesmo: amostragem representativa, tamanho, formato legível por computador e uma referência padrão, pressupondo-se a disponibilidade do material para a comunidade lingüística em geral. A seguir, tratam do uso do corpus contra o preconceito lingüístico, dando relevo ao papel auxiliar que a abordagem proposta pode desempenhar na elaboração de trabalhos de referência. Como evidência, apresentam o perfil de uso do verbo dar, com base na freqüência de ocorrências desse item lexical num corpus específico, verificando-se que grande parte desses usos corresponde a construções do tipo 'Dá só uma aguardadazinha...', uso este não contemplado num dicionário da língua portuguesa, por exemplo, a despeito de sua recorrência na fala, o que se caracteriza como um reflexo sintomático de preconceito. Uma regra léxico-gramatical de formação de sintagmas verbais que permitiria a produção de inúmeras combinações similares é, então, apresentada pelos autores. Concluindo, propõem que a noção de freqüência seja "parte integrante dos critérios de seleção de usos a serem incluídos nos trabalhos de referência", a despeito do prestígio social dos mesmos (p.110).
O artigo que encerra a coletânea, Língua estrangeira: direito ou privilégio?, é de autoria de Josalba Vieira e Heronides Moura. Ao analisarem duas situações prototípicas de plurilingüismo, apoiados em documentos oficiais que legislam sobre os direitos do cidadão a uma educação bilíngüe, os autores chamam a atenção para preconceitos, por vezes camuflados, presentes em situações de aprendizado e de uso de línguas estrangeiras. As situações examinadas são jocosamente identificadas como: O monoglota orgulhoso e o provinciano cosmopolita; e O poliglota esnobe e o poliglota ignorante. Ambos os casos são relacionados à metáfora do "sistema gravitacional" (Calvet, 1999b), que explica a estruturação das línguas entre si, de acordo com cada momento histórico, em termos de língua hipercentral, supercentral, central e periférica. Haveria, de um lado, uma correspondência entre a situação do provinciano cosmopolita e a dos falantes da língua mais importante de cada período histórico; e, de outro lado, entre a situação do poliglota e a dos falantes das demais línguas, resultando a avaliação de "ignorante" ou "esnobe" do lugar ocupado por tais línguas no sistema gravitacional. Falantes poliglotas de línguas tidas como periféricas, por exemplo, não costumam ser valorizados pelo fato de serem plurilíngües (nem por eles próprios!); já aqueles que falam línguas situadas em níveis mais próximos ao centro gravitacional, portanto de maior prestígio, tenderiam ao protótipo do poliglota esnobe, isto é, daquele que usa uma língua estrangeira com a intenção de marcar diferença cultural e não para interagir. Os autores discutem amplamente o preconceito que perpassa essas diferentes situações lingüísticas, ilustrando-as com relatos de casos reais e concluem dizendo que "lutar contra os diversos tipos de preconceito lingüístico ligados ao uso de línguas estrangeiras não é uma tarefa fácil, mas saber identificá-los é um passo importante" (p.124). Nesse sentido, o artigo cumpre perfeitamente seu papel.
Em suma, a diversidade de abordagens críticas em torno de uma temática comum prende a atenção do leitor, seja pela escolha instigante e feliz dos fenômenos lingüísticos analisados (numa obra literária, num filme, numa novela de televisão, no marketing, num projeto de lei, na fala de um professor de gramática, na fala de um poliglota, na fala de um afásico, enfim, na fala do povo...), seja pelo tratamento criterioso dispensado por cada autor ao texto. Acredito que o livro deve atender plenamente seu propósito, merecendo ser lido, divulgado e discutido.


"O preconceito lingüístico se baseia na crença de que só existe uma única língua portuguesa digna deste nome e que seria a língua ensinada nas escolas, explicada nas gramáticas e catalogadas nos dicionários (...)", afirma Bagno.
Marcos Bagno é escritor , tradutor, linguista e professor da UnB- Universidade de Brasília. Ele vem se tornando conhecido por sua luta contra a discriminação social por meio da linguagem. Para ele, o preconceito linguístico precisa ser reconhecido, denunciado e combatido, porque é uma das formas mais sutis e peversas de exclusão social.